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No primeiro dia do Festival Mulheres do Mundo WOW Rio, Maré pulsa a força feminina com diálogos repletos de emoção

 

Encontro aberto por Eliana Sousa Silva contou com convidadas como Conceição Evaristo e Jurema Batista debatendo o tema Justiças

O sol brilhou e a Maré pulsou forte no dia de abertura da terceira edição carioca do festival internacional Mulheres do Mundo WOW, a primeira no conjunto de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. Desde o Galpão Saúde, na Baixa do Sapateiro, e seu vizinho Espaço Normal, passando pela Areninha Cultural Herbert Vianna, Galpão Ritma, Centro de Artes da Maré, a região do Prédio Central da Redes da Maré, na Nova Holanda, até chegar à Casa das Mulheres, no Parque União, o que se viu foi uma movimentação diferente, com mulheres das mais variadas colorindo as ruas e enchendo os espaços para encontros, debates, trocas e aprendizados emocionantes. 

Com o tema central Justiças e realização da Redes da Maré, o WOW Rio Maré recebeu em seu lindo dia de estreia de ministras de Estado a jornalistas e escritoras; de ativistas do feminismo a artistas . De crias da Maré a paraenses, pernambucanas e paulistas; e mulheres de favelas do Brasil inteiro e mulheres de várias partes do mundo. Por todos os lados, monitoras de camisa rosa indicavam os melhores caminhos para chegar aos diferentes locais de programação, onde aconteceram diálogos, rodas de conversa, partilhas, apresentações, oficinas e performances. 

E quem deu o pontapé inicial do encontro, às 10h, na Areninha Herbert Vianna, foi Eliana Sousa Silva, diretora geral do encontro no Brasil e fundadora da Redes da Maré, ao lado da presidente da Fundação WOW internacional, a britânica Colette Bailey, que disse se sentir honrada e feliz com a realização desta edição no Brasil, e, especialmente, no coração da Maré:

“É um prazer estar aqui com vocês, levantar a voz dessas mulheres, que celebram com alegria, mas sem se esconder dos problemas. Somos uma organização de arte, um festival em que todos são bem-vindos, em que podemos ter muitos tipos de conversa, sobre violência, negócios e finanças, artes, tudo junto, ver tudo sendo construído num lugar onde essas vozes acontecem”, disse ela,  lembrando que em 15 anos de WOW pelo mundo o festival já chegou a mais de cinco milhões de pessoas.

Sem esconder a alegria pelo momento histórico, Eliana Sousa Silva destacou o quanto é significativo e simbólico poder recriar o WOW no Conjunto de Favelas da Maré, contrariando as vozes que insistem em afirmar que determinamos eventos não podem acontecer em determinados lugares:

 “Trazer um encontro como esse, de dimensão internacional, é muito importante para pensar e olhar a cidade de um ponto de vista diferente. Sempre se fala da cidade segregando a favela, ouvimos  isso o tempo todo. Queremos avançar nessa agenda pensando nessas interdições.”  

Eliana destacou ainda o envolvimento das 300 pessoas que hoje trabalham na Redes da Maré na realização do WOW e a mobilização no território:

 

 

 

 “Tivemos que mobilizar todas as pessoas. E é bonito ver essa mobilização nas ruas, nas escolas, nas casas. Vai acontecer uma coisa importante. O WOW, com certeza, deixa um legado para as novas gerações da Maré, as meninas que terão contato com esses dias de festival poderão ter outro olhar para o futuro, a partir dessa experiência”.

Depois da abertura, a Areninha seguiu ao longo do dia sendo palco das grandes discussões da dimensão Diálogos do WOW Rio chamada Territórios de Partilhas, com convidadas estreladas. A começar pela liderança favelada histórica Jurema Batista, que esteve ao lado de Eliana na primeira mesa do dia, intitulada Mulheres de favela: força e continuidade, com mediação de Andreza Jorge, curadora dos Diálogos, cria da Maré e pesquisadora dos feminismos favelados. Jurema chegou exclamando, eufórica ao lado da amiga Eliana.  “Nós somos como o tempo, nunca paramos". Ela foi muito aplaudida ao ser anunciada. Moradora do morro do Andaraí, na Zona Norte, foi vereadora por três mandatos e, hoje, é assessora do secretário de Direitos Humanos e Igualdade Racial, Edson Santos. Jurema se disse muito feliz com a concretização do festival”.

"Achei fantástico, principalmente por ser dentro da Maré. A cidade tem muitos eventos, mas a favela é, muitas vezes, alijada de processos de conhecimento, do lazer, dos saberes, das políticas públicas. Esse  festival é lúdico, mas também um grito para que olhem para as comunidades. Estou embasbacada! Me sinto orgulhosíssima em estar participando", disse.

Na parte da tarde, a Areninha recebeu a mesa Desafiando narrativas e construindo saberes na encruzilhada, com a escritora Conceição Evaristo, a artista plástica Génova Alvarado, a artista visual, coreógrafa e cineasta Carmen Luz, com mediação de Inaê Moreira, também curadora do Diálogos. As convidadas falaram sobre como lidam com suas encruzilhadas através da arte e da literatura. Evaristo, que fará 79 anos em breve e será homenageada pelo Império Serrano no próximo carnaval, lembrou que foram as  professoras que primeiro levaram seus livros à sala de aula.

"Há anos que a arte vem dando os recados, dizendo com mais potência que o discurso político. A educação, pra resolver, tem que se contaminar com a arte", disse.

 

 

 

Sobre o futuro, as três mulheres afirmaram que não temos justiça ainda, por isso, deveríamos evitar falar em "mais" justiça. Carmen Luz disse que espera poder continuar políticas cotidianas que tragam a educação e a arte aos centros de nossas existências. Conceição Evaristo recebeu uma emocionante homenagem de algumas leitoras que estavam na plateia, uma delas levantou o cartaz com o nome de um dos contos da escritora,  Olhos d'água, o que fez que ela, do palco, recitasse o texto, levando grande parte do público às lágrimas.

Na sequência, uma mesa da projeto Olhares Crioulos Femininos Cruzados, programação do WOW Rio que faz parte da Temporada França-Brasil 2025, reuniu as ministras Anielle Franco e  Macaé Evaristo, Clarisse Taulewali da Silva, com mediação Cristiane Brandão para falar de Reparação é justiça social para todas as mulheres. Saudar mulheres negras potentes vivas é importante, disse  a irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. “Eu infelizmente perdi minha irmã, a Luyara perdeu a mãe, minha mãe perdeu a filha, mas sem ter nascido aqui, nesse território não estaríamos aqui, num festival como esse. A reparação se dará quando as mulheres forem livres. A revolução está em curso e ela se dará por uma mulher negra e favelada”, disse Anielle, vista na plateia por Sueli Carneiro e a ex-ministra francesa da Justiça Christiane Taubira.

Filha de pai brasileiro, nascido no estado do Amapá, a deputada guianense francesa Clarisse compartilhou memórias sobre as mulheres de sua família e sua terra materna, a Guiana Francesa, as raízes culturais de sua ancestralidade. “Minha tataravó não frequentou a escola, teve sete filhos, e foi casada à força, história repetida por sua avó. Ela diz que como mulher acha importante quebrar esse ciclo", disse.

Assim como Anielle, também iniciou sua militância política aos 24 anos. “Não conhecia misoginia no contexto familiar, a política abriu sua visão. Na política, deparou-se com misoginia. Teve vontade de desistir, mas continuou e atribui essa vontade às crianças autóctones que podem ser impactadas por violências familiares  sexuais. Acompanha essas jovens, escutando-as e tentando aconselhá-las, mas com consciência de que há uma negação, uma herança cultural que causa um desequilíbrio institucional e cultural. Não existe ainda um processo de reparação onde ela vive, afirmou Clarisse.

A ministra Macaé Evaristo lembrou o sofrimento das  populações indígenas e quilombolas no Brasil com relação às violências territoriais e negligências sofridas. A ministra citou o Programa de Defesa de Direitos Humanos e Ambientalistas no qual 70% das pessoas são lideranças indígenas e quilombolas que lutam contra grileiros,  garimpeiros e madeireiros. "Nesse ano de COP 30, precisamos defender nossos biomas e a também a vida de defensores e defensoras dos direitos humanos". Ela lembrou os casos dos rios Doce e Paracambi, e que até hoje não foram reparados, mas ao contrário, o crime ambiental continua em curso: "Memória e reparação não são possíveis sem a luta, a união das comunidades", concluiu.

 

Pelo fim do feminicídio, aborto e ativismo em discussão

 

O tema Justiças se desdobrou em outros encontros, em diferentes espaços da Maré. No Galpão Saúde da Redes da Maré, a mesa de abertura tratou do debate Juntas pelo fim do feminicídio, abordando experiências e metodologias voltadas à prevenção da violência contra mulheres. O encontro contou com a participação de Renata Lira, Cristiane Brandão e Giowana Cambrone, com mediação de Fernanda Pompeu. Renata Lira, advogada, doutoranda em psicologia na UFF, trouxe o peso dos números à tona: “139 mulheres são vítimas de violência por dia no estado do Rio de Janeiro. São quase cinco por hora. São muitas de nós. Isso é uma tragédia e a gente não vê uma comoção sobre esses números.”

A partir desse alerta, a discussão se concentrou em como as políticas públicas e as legislações existentes têm (ou não) garantido proteção efetiva às mulheres. Outro ponto central do debate foi a reflexão sobre gênero e identidade, com foco na urgência de incluir mulheres trans nas políticas de proteção e enfrentamento à violência.

“Ousamos ser quem disseram que não podíamos ser, desde o nosso nascimento. O que esperar desse país que ocupa o primeiro lugar no ranking de homicídios transfóbicos? A maioria dessas mulheres trans são negras, periféricas, que não têm acesso ao trabalho e a direitos básicos. Que a gente possa pensar que o feminino não seja só um risco, mas uma força, como de fato é.”, destacou a advogada ativista Giowana Cambrone. 

Em seguida, ainda no Galpão Saúde o tema foi Justiça Reprodutiva em Movimento: Aborto e Ativismo, com Nara Menezes, Caren Paola Inofuentes, Ana Beatriz Sousa, com mediação de Carla Angelini, conversa marcada pela troca de experiências e pela defesa do aborto como questão de justiça social e reprodutiva.

O debate partiu do reconhecimento de que a luta pelo direito ao aborto ultrapassa fronteiras e conecta movimentos em toda a América Latina. Enquanto alguns países conquistam avanços significativos, como a ampliação da autonomia reprodutiva e o acesso a políticas públicas de saúde, outros enfrentam o fortalecimento de discursos conservadores que buscam criminalizar e silenciar o tema. As falas destacaram a importância da descriminalização social do aborto, indo além da dimensão jurídica. Para as participantes, falar sobre justiça reprodutiva significa também falar sobre racismo, pobreza, desigualdade, direito ao cuidado e em construir estratégias de comunicação para dialogar com mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade em territórios que estão à margem da sociedade. 

A militante afroboliviana Paola Inofuentes, coordenadora-geral da Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora, chamou atenção para o modo como a hipersexualização de mulheres e meninas negras e o racismo estrutural atravessam os debates sobre autonomia dos corpos. Ela defendeu a necessidade de uma indignação coletiva diante das violências que limitam as escolhas das mulheres, especialmente as mais vulnerabilizadas, e destacou que o trabalho territorial que é feito no Brasil precisa ser valorizado porque não é feito em todos os países. 

 

 

 

Ativações da Redes da Maré 

 

Durante todo o primeiro dia do Festival Mulheres do Mundo, o Galpão Ritma foi o espaço destinado à divulgação de alguns dos muitos projetos e ações da Redes da Maré. Desde cedo, um clima de celebração tomou conta do lugar.  “É muito simbólico participar de um evento grandioso, que mostra o poder das mulheres. A Maré está vibrando vida e é preciso ir a outras favelas com um festival como esse”, afirmou Ana Paula Oliveira, coordenadora do coletivo Mães de Manguinhos.

Ana Paula participou como convidada da mesa Visão de Dentro: Narrativas de Justiça, ao lado de Maiara Oliveira e Bruna Silva, com mediação da jornalista Maria Teresa Cruz. 

“Tudo muito lindo, dentro do nosso território é apaixonante. Um momento de hoje é demais, me empurrou da cama. E vivenciar uma mesa é algo quente, que fala de luto e de luta. Que todos venham somar”, lembra Bruna, integrante do movimento Mães da Maré.

As convidadas estão na primeira temporada do podcast Visão de Dentro, da Redes da Maré com apoio do Instituto Serapilheira, painel que amplia para o espaço público as narrativas sobre os impactos das operações policiais em Manguinhos e na Maré, e as estratégias de enfrentamento a um sistema de justiça que insiste em falhar desde suas etapas iniciais. 

Bruna Silva, mãe de Marcos Vinícius, estudante morto numa operação policial na Maré em 2018, completou dizendo que há uma rede de solidariedade muito importante na mobilização. “A Redes da Maré foi que me fortaleceu e abraçou. Assim conheci pessoas comprometidas com a nossas vidas no território. A mobilização que não me deixou morrer”, acrescentou.

A conversa reuniu mulheres que transformaram suas experiências em luta por justiça e reparação frente à violência armada. ”Em 2018, quando meu filho morreu, ocorreram muitas fake news, veio algo de dentro, de mãe e mulher para mobilizar e fazer do luto à luta”, desabafa. 

Maiara, baleada grávida numa operação policial na Maré, que fez com que perdesse o bebê, também se emocionou: “Eu me escondi numa caixinha de sapato, num pesadelo. Hoje quero falar que perdi meu anjinho, pois estava grávida quando levei um tiro de fuzil”, conta ela, mexendo com os corações de todos  à volta.

Na parte da parte, a Ritma abrigou o lançamento da pesquisa Infâncias na Maré — Impactos da violência armada na saúde e imunização, parceria da Redes com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que investigou como a violência armada e o racismo institucional afetam o direito à saúde de gestantes e crianças de 0 a 6 anos no Conjunto de Favelas da Maré. O estudo reúne dados sobre acesso ao pré-natal e à imunização, com base em entrevistas, grupos focais, observação em campo e análise de informações secundárias. O objetivo é evidenciar as barreiras impostas pela violência armada e como comprometem a continuidade do cuidado e a cobertura vacinal, além de apontar os efeitos emocionais e psicológicos vividos pela população da Maré.

Flávia Antunes Michaud, chefe do escritório do Unicef no Rio de Janeiro, falou sobre como o modelo de segurança pública está atacando a primeira infância, ressaltando como as operações policiais impactam na imunização, reduzindo em 90% na frequência das crianças, sendo necessário achar métodos para mudar essa situação. Carolina Dias, coordenadora do eixo Direito à Saúde da Redes da Maré, mostrou os números da pesquisa:

“Nos 221 sem operação policial de 2025, ocorreram, em média 187,30 imunizações, atendendo a 89 crianças. Nos dias de operações, foram apenas  20 vacinas em nove crianças. Nos dias após as operações, são 70,9 imunizações, em 32 crianças. É um problema muito grave que precisa ser pensado”, explicou

Aline Aguiar, superintendente da Promoção à Saúde/SMS-Rio, falou sobre a atenção primária. “São seis equipamentos na Maré. É preciso ter um cuidado com a primeira infância com a busca ativa, que é algo fundamental para correr atrás das crianças que estão num nível grande de estresse”, conclui. Já Gislani Mateus, superintendente da Vigilância em Saúde/SMS-Rio, falou da diminuição da cobertura vacinal. “Estamos correndo atrás para mudar essa situação. O Programa Vacina na Escola está desde 2023 no Estado do Rio. Às vezes é necessário a vacina no domicílio. A vacina conseguimos superar, mas o atraso no desenvolvimento e a saúde mental é mais complicado. Fechar a escola e o posto médico é um protocolo da Cruz Vermelha, mas precisamos de uma reparação”, finalizou

 

 

 

Neste sábado, o Festival Mulheres do Mundo WOW Rio continua com uma programação intensa na Maré, além dos debates e encontros mais teóricos, haverá performances, oficinas, o campeonato de Futsal na Vila Olímpica e shows no Centro de Artes da Maré. A Feira Negócios Delas também segue espalhada em diversos pontos do território, com barracas de alimentação, artesanato, beleza e bem-estar, moda e livros.