Desencaixando Opressões: a força das Jovens Artivistas do WOW Rio na Maré
Jovens mulheres da Maré e do Alemão mostram como arte e ativismo têm impulsionado debates sobre gênero, raça e território.
Por Ellen Paes
Machismo. Patriarcado. Depressão. Violência. Validação. Uma jovem entra em cena com essas palavras escritas em seu corpo, como rótulos. Nas mãos e sobre os ombros, objetos como ferro de passar, bacia, panos de prato e de chão. Na trilha de fundo, a música Triste, louca ou má, da banda Francisco el Hombre, que, para quem não conhece, se tornou um hino de emancipação e libertação das mulheres anos atrás. No palco, a jovem atravessa um corredor formado por outras meninas, que a ajudam a retirar alguns papéis do corpo. Ela segue até uma grande caixa cênica, onde começa a arrancá-los, enquanto uma senhora e uma criança entram em cena, evocando ancestrais e futuras gerações. A cena culmina na leitura de uma poesia de autoria coletiva e termina com as jovens abraçando mulheres da plateia ao som de Maria, Maria, de Milton Nascimento: “mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre. Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”.
A performance se chama Desencaixando Opressões e foi apresentada pelas Jovens Artivistas, um grupo composto por dez jovens mulheres - sete da Maré e três do Alemão - durante a terceira edição carioca do Festival WOW Mulheres do Mundo, que aconteceu no final de outubro no Conjunto de Favelas da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. E foi com lágrimas de emoção nos olhos que a facilitadora do grupo, Dayana Sabany, descreveu esse trabalho, que, segundo ela, tem sido transformador para todas as participantes.
O projeto é fruto da parceria da Casa das Mulheres da Maré, equipamento da Redes da Maré, com a King's College de Londres, com apoio do também britânico Arts Humanities Research Council, e foi concebido para acontecer paralelamente ao WOW na Maré. Inicialmente, o projeto se chamava Jovens Ativistas, mas as próprias participantes pediram a mudança de nome para Artivistas - uma junção de arte e ativistas -, sugestão acolhida por refletir melhor o propósito de fortalecer a tradição de luta por meio da arte.
Além de performances como a que abre esta reportagem, as jovens participaram de oficinas semanais, desde maio de 2025, incluindo colagem, fotografia, dança, teatro, entre outras linguagens. A coordenadora do projeto, Julia Leal, diz que ao final do ciclo das oficinas, previsto para abril de 2026, será produzido um material pedagógico para que os aprendizados possam se multiplicar e outras pessoas de outros lugares tenham a chance de desenvolver formações com jovens mulheres. A ideia é estimular a expressão artística como meio de elaboração coletiva de questões sociais que impactam a vida delas em seus territórios. É uma intervenção que articula práticas estéticas, reflexões sociais e ação política. “A arte, nesse contexto, é ferramenta de resistência, mas também de cuidado e de elaboração coletiva. Mais do que formar artistas, o projeto aposta na arte como modo de existência e de fortalecimento de vínculos comunitários, criando redes de apoio e imaginação que ajudam a sustentar a vida em meio à violência e às desigualdades", afirma Julia.
Durante o WOW de 2025, as Artivistas participaram de uma oficina de bandeiras para a Marcha das Mulheres Negras, marcada para o fim de novembro de 2025. Além disso, duas delas compuseram mesas de debate: Artivismo, o futuro é agora, com Cathy McIlwaine, da King's College; e Meninas Faveladas no centro da luta por justiça climática. E todo o grupo apresentou a performance Desencaixando Opressões.
Para a facilitadora Dayana Sabany, a maior força de transformação desse projeto está no fato de ser um processo coletivo. “Isso é o meu maior motivo de orgulho, porque elas se envolvem e encontram um lugar confortável para participar”, afirma. Uma das jovens, a estudante Ana Beatriz Alves, a Bea, de 18 anos, concorda. Ela, que é cria da Maré, diz que quando entrou no projeto não se considerava uma pessoa politizada, mas que algo foi sendo transformado dentro dela. “É muito gostoso participar desses fluxos, compartilhar as histórias, os atravessamentos. Eu não sabia que precisava tanto de um projeto como esse. Acho que mudei bastante desde quando entrei até agora”, conta Bea.
Já a estudante Tayssa Magalhães, outra jovem do grupo, revela que sempre teve a arte e o ativismo dentro de si, mas que com o projeto encontrou ferramentas de escuta e troca para fortalecer ainda mais essas capacidades. “Eu me sinto mais segura da potência que carrego, mais confiante em me expressar e defender o que acredito. E me ver ao lado das outras meninas com histórias tão parecidas e únicas me fez entender que eu não estou sozinha e que juntas a gente constrói e conquista algo maior”.
E, na equipe, a coletividade também parece ser fundamental: além de Julia e Dayana, o projeto conta com a produção de Stefany Silva, que aparece nos relatos como alguém fundamental para todo o processo acontecer.
Arte e ativismo podem prevenir violências?
Essa é a pergunta-chave de uma pesquisa que está sendo realizada paralelamente ao trabalho de formação com as jovens, como desdobramento do projeto. O estudo quer investigar se o ativismo pode ser compreendido como uma ferramenta de prevenção à violência de gênero. A pesquisa está na fase de entrevistas com as jovens, mas Dayana diz que algumas reflexões já podem ser feitas a partir das respostas recebidas. “Fico muito feliz em ver as meninas se articulando, se acolhendo, impulsionando umas às outras. A pesquisa pode ajudar a romper padrões.”
Bea Alves diz que o grupo a ajuda a identificar problemas que antes ela não sabia nomear. “Estou aprendendo sobre coisas que eu nem sabia sobre a questão de gênero. Há muitos alertas que a gente não percebe no dia a dia. Agora, estudando, estou entendendo mais”, garante. Tayssa complementa: “quando usamos a arte para falar do que vivemos, sentimos e vemos no nosso território, no nosso dia a dia, criamos consciência tanto em quem está se expressando, quanto em quem assiste. E essa consciência gera mudança”.
Depois da fase de entrevistas, as jovens irão participar de grupos focais, técnica de pesquisa qualitativa que reúne um pequeno grupo com características em comum, para discutir um tópico específico sob a orientação de um moderador. Os resultados vão integrar uma publicação, com lançamento previsto para meados de 2026.
Intercâmbio com a Inglaterra
Como parte do Jovens Artivistas, duas jovens viajaram ao lado de Dayana e da produtora Stefany Silva para Londres e Durham, na Inglaterra, para acompanhar uma edição inglesa do festival internacional nascido em 2010, justamente no Reino Unido. Dayana conta que elas tiveram encontros importantes com a equipe da Fundação WOW e da King's College, além de trocas de experiências diversas com as jovens inglesas. “Na programação do festival, apresentamos nosso processo em uma sala de cinema. As meninas foram muito bem recebidas, ganharam fãs, trocaram contatos, criaram redes, foi muito importante pra elas”.
Bea lembra que foi uma oportunidade única. “Eu não acreditava. Acho que só caiu a ficha quando cheguei lá. Até chorei. Uma hora você acorda na Maré pegando ônibus, na outra está num avião super chique! Elas trataram a gente com muito carinho. Conseguimos falar do nosso projeto e elas incluíram nossa foto no projeto delas. No final, dei uma palhinha da carta com a poesia que leríamos, semanas depois, na nossa performance na Maré. Além disso, fizemos oficinas de Bollywood [indústria de cinema em língua hindi, baseada em Mumbai, conhecida por filmes vibrantes cheios de música, dança e grandes histórias], sapateado, dança e pintura. Coisas que eu não faço no dia a dia aqui”, conta.
Julia Leal destaca a importância de parcerias entre organizações de base comunitária e universidades internacionais, um encontro que une diferentes formas de produzir conhecimento. “Quando uma instituição como a Redes da Maré se conecta a universidades de outros países, o que está em jogo não é apenas troca técnica, mas a possibilidade de reconhecer a favela como um lugar de produção de saber, e não apenas de aplicação de políticas. Essas colaborações permitem que o conhecimento gerado a partir do território dialogue com agendas globais de justiça, gênero e direitos humanos, sem perder o enraizamento local", completa a coordenadora.
Corpo, Território e WOW na Maré
As Jovens Artivistas são meninas negras, periféricas e oriundas das favelas da Maré e do Alemão. Então, a noção de território e pertencimento é muito importante para o desenvolvimento delas, e a realização do WOW pela primeira vez na Maré teve um impacto relevante.
“Foi muito simbólico e forte ser na Maré. Fez a gente se orgulhar do nosso território, desejar trazer os nossos para viverem a experiência, desconstruir narrativas preconceituosas e fortalecer narrativas sobre a potência e a beleza que a favela tem. E o nosso corpo faz parte disso. É um corpo político, que carrega uma série de etiquetas ideológicas e, isso, para as meninas, leva a uma movimentação de potência, de entender que suas raízes pavimentaram estradas de luta e que elas representam essa continuidade”, descreve Dayana.
Dois dias após encerrarem as atividades do festival, as jovens foram surpreendidas por uma megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, que ficou marcada como a mais letal na história do Rio de Janeiro, deixando 121 mortos. Uma tristeza com a qual as meninas foram obrigadas a lidar e que ainda estão elaborando.
Tayssa Magalhães, moradora do Alemão, conta que foi um baque. “Foi muito difícil, mexeu diretamente comigo. É muito triste e doloroso viver essa contradição num dia que a gente está mostrando a nossa potência e a nossa beleza e, logo depois, a gente vê mais uma vez a violência falando mais alto. Mas acho que é por isso que o que a gente faz é importante, porque a arte também é uma forma de resistência”.
Importante ressaltar que tanto a Maré quanto o Alemão são territórios de disputa, mas também de criação, onde a arte se entrelaça à política como ferramenta de denúncia, mobilização e valorização da identidade e da memória locais. Trabalhos e pesquisas como os das Jovens Artivistas buscam aprofundar esse legado, observando como as práticas artísticas e de mobilização de jovens articulam o passado e o presente das lutas nas favelas.
Além disso, territórios como a Maré e o Alemão têm na atuação das mulheres uma marca decisiva de resistência e construção coletiva. Ao longo de décadas, lideranças femininas enfrentaram a violência estatal, reivindicaram serviços básicos e estruturaram redes comunitárias de cuidado e defesa de direitos. Esse histórico de mobilização não só garantiu melhorias concretas nas condições de vida, como também fortaleceu a formação política local. Pensar o ativismo nesses territórios é reconhecer que a transformação social nasce do cotidiano e das estratégias coletivas, criadas para enfrentar as injustiças.
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