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Onde os olhares se reconhecem: a potência crioulizada do WOW na Maré
Projeto Olhares Crioulos Femininos Cruzados consolida um novo formato de cooperação entre França e Brasil no Festival WOW Mulheres do Mundo

Por Ellen Paes

“Aqui, pela primeira vez, me senti bonita nos olhos das pessoas”, disse uma entre as 13 integrantes que fizeram parte do comitê da França no Festival WOW Mulheres do Mundo, realizado no Conjunto de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro no último mês de outubro. A frase sintetiza o impacto do projeto Olhares Crioulos Femininos Cruzados, que reuniu artistas e ativistas de Brasil, Guiana Francesa, Guadalupe e Martinica em atividades como oficinas, debates, intervenções e performances artísticas.

Mais do que um mero intercâmbio cultural, o encontro ressoou como uma reconfiguração do olhar, devolvendo beleza e pertencimento através da troca. Mulheres de territórios diferentes, mas com tanto em comum, se identificando entre si com verdade e afeto. Maïra Gabriel Anhorn, do Núcleo de Acompanhamento Institucional da Redes da Maré, conta que a instituição tem uma parceria histórica com o Consulado da França no Rio, desde o início da atuação, há 20 anos. “Essa parceria começou pela relação com a (coreógrafa) Lia Rodrigues, mas se ampliou para outros projetos artísticos e culturais de intercâmbio”, explica. Foi a partir de um encontro entre representantes da Redes da Maré e da França durante uma visita da ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, que surgiu a aproximação com a assessora de políticas públicas da Guiana Francesa, Djamila Delannon, que veio a se tornar parceira. O desejo de construir uma colaboração se concretizou com o lançamento do edital da Temporada França-Brasil 2025.

Foi assim que o projeto foi integrado à terceira edição do Festival WOW Rio, já que o período do edital coincidia com a previsão de realização do encontro na Maré. “O Olhares Crioulos é um projeto que já existe por si, mas que ganha potência com o WOW e vice-versa”, afirma Maïra. A ideia inicial era que o intercâmbio acontecesse com mulheres francesas. “Mas pensamos: por que não olhar para os territórios historicamente ligados à França mais próximos de nós? Dessa forma, o projeto acabou sendo desenhado com mulheres de Guiana Francesa, Martinica e Guadalupe, com realidades muito específicas”.

As coordenadoras de cada território se reuniram quinzenalmente em encontros online, ao longo de oito meses, para pensar as atividades que seriam interessantes para o WOW na Maré. E foram selecionadas 13 participantes, que seguiram dinâmicas próprias em cada região, com ritmos e formatos distintos de encontro. “Essas mulheres são artistas, ativistas e ecofeministas, e cada uma pensou algo que fizesse sentido para o seu território. A mobilidade entre esses lugares é difícil, e muitas delas só se conheciam porque haviam estudado em Paris. Então o projeto também teve esse papel de conectar territórios entre si, e não apenas com a França”, diz Maïra.

A Casa Preta, um dos equipamentos da Redes da Maré, foi o principal espaço a receber as atividades pensadas, um lugar oportuno já que a maioria das mulheres neste intercâmbio é negra e/ou indígena. Maïra lembra que o formato foi pensado também quando ela, a pesquisadora Andreza Jorge, curadora da dimensão Diálogos do WOW, e a diretora fundadora da Redes da Maré, Eliana Sousa Silva, estiveram por uma semana na Guiana Francesa. “Decidimos que cada território teria produções visuais e sonoras - fotos, podcasts, áudios e intervenções - criando uma experiência sensorial durante o festival. Também pensamos em integrar o projeto à programação geral do WOW: rodas de conversa, debates, performances, etc. Foi uma ocupação artística, política e simbólica”.

Djamila Delannon, que depois do WOW na Maré ficou no Brasil ainda para a COP-30, diz ter ficado absolutamente impressionada. “Ficamos particularmente marcadas pela qualidade da programação e pela notável capacidade de mobilização da Redes da Maré. A coerência geral do evento - construída pela presença de artistas e intelectuais brasileiras, pela pertinência das mesas-redondas e pela ressonância tanto com a Maré quanto com os nossos territórios - foi de altíssimo nível. Voltamos com a sensação de que uma parceria duradoura se consolidou, acompanhada de um entusiasmo renovado para agir em cada um dos nossos territórios. A dinâmica coletiva que nos mobilizou ao longo de todo o ano encontra aqui uma forma de consolidação.”

Para ela, um caminho natural para esta consolidação é a expectativa de realização de um WOW nos mesmos moldes na Guiana Francesa. “A ideia de construir um WOW em diálogo com outros territórios - como foi feito no Rio - nos parece particularmente fecunda. As regiões envolvidas compartilham desafios comuns, ao mesmo tempo em que têm realidades próprias. Desejamos continuar essa dinâmica, especialmente com os estados do norte do Brasil, com os quais a Guiana compartilha muito mais que uma geografia: práticas, visões de mundo, relações com a natureza. No rastro da COP-30 e dessa iniciativa pan-amazônica, organizaremos, portanto, um WOW na Amazônia”, adianta.

A imersão na Maré

Realizar o Olhares Crioulos na Maré foi essencial e fez toda a diferença. Justamente para ressignificar o olhar para este território tão estigmatizado em todo o mundo. Para além da violência, Maïra Gabriel fala sobre a perspectiva de algumas convidadas. Uma delas, de pele mais retinta, falou que era a primeira vez que reconhecia sua própria beleza através do olhar das mulheres locais. Então, o projeto tem um impacto social de transformar a autoestima e também promover o reconhecimento entre mulheres que são diferentes, mas têm suas interseccionalidades. As atividades do festival fortalecem a potência de cada uma. “Se eu tivesse tido uma organização como essa na cidade, na minha infância, minha autoestima teria sido outra”, disse outra.

Na avaliação de Maïra, essas experiências mostram como o festival, através deste território que é a Maré, atua também nos campos subjetivo e coletivo dessas mulheres. “Se tivesse acontecido na Praça Mauá, teria sido um evento mais institucional, menos vivo. Na Maré, tudo foi atravessado por uma convivência real, com trocas afetivas e descobertas”. Caroline Vabret, adida de Cooperação e Ação Cultural do Consulado Geral da França no Rio, concorda. “Muita gente que saiu do centro do Rio e foi à Maré foi surpreendida positivamente: viram uma região estruturada, com gente ativa, um festival bem organizado, tudo fluindo, relações serenas. Lembro de participantes francesas dizendo que derrubaram completamente o clichê da favela violenta e insegura. Elas passaram uma semana lá sem o menor problema, muito bem acolhidas”, relata.

Sobre as operações policiais que terminaram em uma chacina com 121 mortos nos Complexos da Penha e do Alemão, Caroline diz que as participantes francesas tiveram um choque emocional e de realidade. Segundo ela, foi um lembrete de que esses territórios são palcos de produção cultural, mas também de negligência do poder público. E isso justifica, inclusive, o ativismo. “A conclusão que chegamos é que, principalmente agora, não devemos desanimar. Não houve ‘ah, então não voltamos mais’. Pelo contrário: a operação deu mais peso e relevância ao trabalho da Redes da Maré e ao nosso projeto. Tudo isso evidencia como a atuação da Redes é essencial - e mais necessária do que nunca.”

Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça da França, expõe que encontros como esses, proporcionados pelo WOW são essenciais para a garantia de um futuro mais democrático e digno. No festival, ela participou da mesa Confabular futuros a favor da democracia ao lado de Sueli Carneiro, Tatiana Roque e Flávia Oliveira, um dos pontos altos do evento. “A mobilização de um festival como o Festival WOW, que reúne personalidades de todos os lugares do mundo, com experiências diferentes e em momentos distintos da história de seus países faz com que trajetórias diversas se cruzem. E acaba se tornando um espaço para pensar a democracia como condição para construir o futuro. É assim, juntos e solidariamente, que vamos construir o nosso futuro”, conclui.

Temporada França-Brasil 2025

Integrado à Temporada França-Brasil 2025, o programa Olhares Crioulos Femininos Cruzados trouxe 13 mulheres de Guiana Francesa, Martinica e Guadalupe para a Maré, onde promoveram trocas sobre território e a ideia de “crioulização” - entendida como um processo contínuo de mistura, encontro e transformação entre culturas, identidades, línguas, saberes e práticas. A iniciativa marca uma nova fase da cooperação entre Brasil e França, agora dedicada a destacar dimensões pouco visibilizadas das duas culturas.

Entre as participantes estão: da Guiana, a ex-ministra Christiane Taubira; a co-curadora do programa, Djamila Delannon; o artista contemporâneo Cedex; a diretora da Sepanguy, Raphaëlle Rinaldo; a mediadora cultural, científica e de saúde, Clarisse Ansoe-Tareau; e a artista visual e militante kali’na, Clarisse Taulewali da Silva. Da Martinica, participaram a artista, formadora e facilitadora de oficinas de artes plásticas Nil Quivar; a artista sonora Yémendja Abatuci; e a consultora, coordenadora de projetos e formadora nas áreas de cultura e Economia Social e Solidária Anne Leduc. Já de Guadalupe, estiveram presentes a fotógrafa Jessica Laguerre; a dançarina e performer Natty Montella; a dançarina e pesquisadora Stella Séba Moutou; e a fotógrafa, autora, historiadora de arte e gestora de projetos culturais Cynthia Phibel.

Segundo a adida do Consulado da França no Rio, Caroline Vabret, um dos focos da temporada é a diversidade e a afrodescendência - eixo que o projeto exemplifica ao colocar em cena os territórios caribenhos franceses, ainda pouco conhecidos no Brasil. O programa também dialoga com outro ponto central da curadoria: democracia e juventude, reforçado pela parceria com o Festival WOW Rio na Maré, que reuniu jovens artistas e ativistas engajadas nos debates contemporâneos.

E quais os próximos passos?

No curto prazo, as participantes realizam devolutivas em seus territórios: rodas de conversa e atividades locais para compartilhar a experiência vivida no WOW Rio na Maré.

No médio prazo, a Redes da Maré e o Consulado da França discutem um novo edital voltado a mulheres, com a proposta de criar um intercâmbio contínuo entre o WOW Rio e os territórios de Guiana Francesa, Martinica e Guadalupe, incluindo a possibilidade de futuros festivais, como um WOW Amazônico e um WOW Caribenho.

No longo prazo, a Redes da Maré planeja instalar residências artísticas permanentes na Maré, em um espaço dedicado a receber artistas e pesquisadores do Brasil e do mundo. A intenção é transformar o que foi vivido no Olhares Crioulos Femininos Cruzados em um modelo duradouro de intercâmbio e criação.